Por Marina Costa Lobo (ICS-ULisboa)
Há duas grandes leituras possíveis do resultado de domingo à noite: uma é que assistimos aos primeiros sinais do fim do sistema partidário mais duradouro da Europa Ocidental tal como o conhecemos. Este sistema partidário resistiu a quase tudo, incluindo a maior crise económica em democracia nos tempos da troika. Agora, finalmente, quebraram-se as comportas e começou a mudança. Dos quatro principais partidos que dominaram a Assembleia da República entre 1976 e 2019, dois tiveram derrotas históricas: o CDS-PP e o PCP. Vamos ter dez partidos no Parlamento. À esquerda entram o Livre, cresce o PAN e o BE mantém, sublinhando o abandono do PCP por parte de um eleitorado de esquerda tendencialmente pós-materialista. À Direita, a Iniciativa Liberal e o Chega mostram que poderá haver mudanças significativas que reorganizem a Direita.
Outra leitura possível começa por avaliar o peso dos dois principais partidos do centro do espectro partidário, PS e PSD. Se fizermos uma simples soma, vemos que juntos, enquanto estes partidos ganharam em 2015 apenas 166 deputados, em 2019 conseguiram eleger 185. Isto é, 65 por cento dos votantes escolheram um destes dois partidos. São números de fazer inveja a quase todos os partidos do centrão por essa Europa fora. É claro que esta comparação esconde as oscilações de voto entre PS e PSD. De qualquer forma, o rombo, para já, no sistema partidário deu-se nos seus extremos e não no seu centro. Além de juntos terem mais deputados do que em 2015, PS e PSD reforçaram a distância em relação aos outros partidos do seu bloco, em termos de votos e de assentos. Continuam por isso a ser os partidos dominantes do sistema.
Perante estas duas realidades, qual é a que vai caracterizar a dinâmica do sistema partidário nos próximos tempos? O PS está numa situação mais confortável do ponto de vista das opções que se apresentam a António Costa. Enquanto em 2015, teve mesmo de aliar-se a PCP e BE juntos para chegar à maioria absoluta, agora só um deles é suficiente para esse mesmo resultado. E ainda tem o PAN ou o Livre para soluções conjunturais à disposição. Já o PSD corre muitos riscos se enveredar numa luta fratricida em que ponha em causa esse domínio à direita. Rui Rio cometeu muitos erros, mas parte dos votos que foram conseguidos deveram-se a este líder.
Dito isto, a eleição de domingo sugere que estão criadas condições para que se fragmente a sério o sistema partidário e até que haja realinhamentos eleitorais. A haver mais fragmentação, seja à esquerda ou à direita, é importante notar que esta não é sinónimo de instabilidade desde que haja entendimento e vontade entre as lideranças partidárias de se entender.
Mais fundamental que isso seria um realinhamento eleitoral, esse sim muito mais definidor do sentido da política. Para isso, era preciso que outros temas que não os sócio-económicos que dominaram a política portuguesa desde 1976, se impusessem agora. Se o Chega conseguir pôr-nos todos a falar de imigrantes, ou se passarmos o tempo a discutir racismo em vez de desigualdade social, essa será uma mudança profunda do nosso sistema partidário, espelho do declínio da CDU, e de uma imposição da agenda dos partidos do extremo do espectro partidário favorecendo uma perspetiva da sociedade que reforça as identidades individuais em detrimento de pensar a sociedade em torno de grupos sócio-económicos. Essa mudança última é que poderia dinamitar todo o sistema como ele existe hoje. Mas ainda não chegámos lá.
Com fragmentação e realinhamento eleitoral ou sem ele, há que saudar a disponibilidade dos portugueses que decidiram finalmente arriscar noutros partidos para abanar o sistema. É um sinal de vitalidade da cidadania e uma forte mensagem para os partidos instalados.