As bases sociais do novo sistema partidário

Por João Cancela (NOVA FCSH) e Pedro Magalhães (ICS/ULisboa)

Quem votou em quem no domingo passado? A questão vai merecer muito trabalho nos próximos meses. Mas podemos começar a responder-lhe recorrendo a uma sondagem conduzida à boca das urnas pelo ICS/ULisboa, o Iscte e a GfK Metris no dia das eleições. A informação que fornece sobre os votantes em cada partido está limitada ao sexo, ao grupo etário e à instrução, mas já dá pistas sobre a recomposição das bases sociais do nosso novo sistema partidário.

Em primeiro lugar, as eleições de 2024 confirmam a adesão de Portugal ao chamado “gender gap moderno” que caracteriza a generalidade das democracias avançadas, onde os homens votam mais à direita que as mulheres. Em particular, PS, BE e (especialmente) PAN atraíram desproporcionalmente as mulheres que votaram, enquanto a Iniciativa Liberal e (especialmente) o Chega fizeram-no com os homens. É verdade que o Chega de domingo passado mitigou o perfil de há dois anos, quando apenas uma em cada três votantes eram mulheres. Desta vez foram duas em cada cinco. Dito de outra forma, de 2022 para 2024, o Chega cresceu ainda mais entre as mulheres do que entre os homens. Mas tal como sucede com outros partidos da direita radical na Europa, os homens predominam.

A segunda indicação relaciona-se com o nível de instrução dos votantes. Em trabalhos recentes, Thomas Piketty defende que, na maior parte das democracias ocidentais, a esquerda perdeu o voto dos trabalhadores menos qualificados, substituindo-os por um grupo em rápido crescimento, os que completaram o ensino superior. Ter-se-ia assim transformado numa “esquerda brâmane”, por analogia com a casta hindu de sacerdotes e intelectuais. Portugal seria, nesses estudos, uma exceção. Mas estas eleições mostram que, até no nosso país, “esquerda” e “direita” são categorias demasiado latas. PS e CDU recolheram 36% dos votos de quem não tem um curso superior, contra 26% entre os licenciados. Mas BE, Livre e PAN invertem o padrão, ganhando em conjunto 13% dos votos junto dos diplomados e apenas 8% junto dos outros. E direita também é heterogénea. Entre os votantes licenciados, o Chega não ultrapassou os 11%, mas duplicou essa votação entre os restantes. Em contraste, entre os diplomados, AD e IL congregaram 44% dos votos, ficando-se pelos 29% entre os que completaram o secundário ou menos. Assim, em Portugal, como noutras paragens, há duas esquerdas e duas direitas do ponto de vista da instrução dos eleitores: uma esquerda “velha” e uma “nova”; uma direita “radical” e uma “moderada”.

O terceiro aspeto que caracteriza a mudança eleitoral a que assistimos tem a ver com a idade dos votantes. Os jovens adultos, com idades entre os 18 e os 34 anos, terão representado quase um quarto do total dos votantes nesta eleição, muito próximo do que se julga ser o seu real peso no total do eleitorado. A diversificação do menu de escolhas partidárias viáveis terá contribuído não apenas para a mobilização dos mais jovens, mas também para o fortalecimento da relação entre a idade e as escolhas eleitorais. Esta relação é clara: partidos “novos” (IL, Livre, Chega e, ainda “novo”, o BE) atraem os mais jovens muito mais que os partidos “velhos” (PS, CDU, AD). O caso do PS é, contudo, particularmente extremado. Ainda dominante entre os pensionistas — tal como desde 2015 — o PS teve um resultado desastroso entre os votantes com idades entre os 18 e os 34 anos, onde não passou do terceiro lugar, pouco acima da IL. É certo que a demografia não é destino, que os indivíduos mudam de preferências à medida que envelhecem, e que os partidos podem mudar de discurso e de prática. Mas não é evidente o que a “velha” esquerda terá de fazer para conseguir recuperar esta geração.

Se cruzarmos as variáveis sexo, instrução e idade, podemos iluminar melhor as forças e vulnerabilidades de cada um dos três principais atores do novo tabuleiro político. O gráfico reproduzido apresenta as probabilidades de votar na AD, no PS e no Chega de alguém que pertença a um de doze grupos diferentes, definidos por combinações entre as três variáveis sociodemográficas. Importa sublinhar que estes grupos não têm pesos iguais no eleitorado: por exemplo, há muitos mais homens com idades entre os 35 e os 64 anos sem curso superior (17% da amostra) do que eleitoras com mais de 65 anos e um grau universitário (2%).

A AD obteve níveis de apoio mais homogéneos do que PS ou Chega entre diferentes grupos de eleitores. Contudo, foi especialmente forte entre os mais qualificados, em particular entre os jovens adultos do sexo masculino, grupo em que a vantagem face aos dois rivais foi mais expressiva. É também verdade que, entre os mais velhos menos qualificados, a AD continua a não conseguir aproximar-se do PS. No entanto, globalmente considerados, os resultados da AD nos vários grupos não se afastam muito do total nacional – 29% dos votos —, fazendo com que tenha sido a força política mais capaz de atrair eleitores de diferentes segmentos sociodemográficos.

O perfil eleitoral do PS foi mais vincado. Foi, de longe, o partido mais bem-sucedido entre os pensionistas menos qualificados, um grupo que representou quase um quinto do total de votantes, obtendo praticamente metade desses votos tanto entre mulheres (49%) como homens (48%). Em contraste, independentemente do grau de instrução, na faixa entre os 18 e os 34 anos terão votado no PS apenas 10% dos eleitores do sexo masculino e 15% das eleitoras. A situação do PS só melhora um pouco nas idades entre os 35 e os 64 anos – especialmente no que toca a um dos grupos mais numerosos de votantes, o das mulheres sem curso superior. Em suma, o resultado do PS, sendo praticamente idêntico ao da AD em termos agregados, é fruto de uma composição social muito diferente: menos transversal, dependente do bom desempenho entre os eleitores mais velhos, e penalizada pela incapacidade de atrair eleitores mais jovens de ambos os sexos, instruídos ou não.

Por fim, o Chega foi o partido hegemónico junto dos homens jovens menos qualificados, onde obteve 41% dos votos. Contudo, este grupo representa apenas 7% do total de votantes, tornando este resultado insuficiente para explicar o crescimento do partido. Na verdade, o Chega compete com a AD e o PS junto dos homens e mulheres menos qualificados com idades intermédias (entre os 35 e os 64 anos), e até com o PS entre homens e mulheres jovens com curso superior.

Todos os votos contam, e cada eleitor é mais complexo do que uma mera combinação de atributos sociodemográficos. Mas perceber como evoluirá a propensão de diferentes grupos da população para aderir à mensagem e às ideias das principais forças que emergiram das eleições de domingo será uma das chaves para compreender as próximas fases de desenvolvimento do sistema partidário português. 

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